sexta-feira, 28 de maio de 2010

O Feminino Selvagem

O Feminino Selvagem

A fauna silvestre e a Mulher Selvagem são espécies em risco de extinção.
Observamos, ao longo dos séculos, a pilhagem, a redução do espaço e o esmagamento da natureza instintiva feminina. Durante longos períodos, ela foi mal gerida, à semelhança da fauna silvestre e das florestas virgens. As terras espirituais da Mulher Selvagem, durante o curso da história, foram saqueadas ou queimadas, com seus refúgios destruídos e seus ciclos naturais transformados à força em ritmos artificiais para agradar os outros.

A vitalidade esvaída das mulheres pode ser restaurada por meio de extensas escavações psíquico-arqueológicas" nas ruínas do mundo subterrâneo feminino. Com esses métodos podemos recuperar os processos da psique instintiva natural, e, através de sua incorporação dao arquétipo da Mulher Selvagem, conseguimos discernir os recursos da natureza mais profunda da mulher. A mulher moderna é um borrão de atividade. Ela sofre pressões no sentido de ser tudo para todos. A velha sabedoria há muito não se manifesta.

Os lobos saudáveis e as mulheres tem certas características psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção. os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. Sao profundamente intuitivos e tem muita preocupação para com o seus filhotes, seus parceiros e sua matilha. Tem experiência em se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Tem uma determinação feroz e extrema coragem.
No entanto, as duas espécies foram perseguidas e acossadas, sendo-lhes falsamente atribuído o fato de serem trapaceiros e vorazes, excessivamente agressivos e de terem menor valor do que seus detratores.

Num passado não muito distante, as mulheres continuavam crescendo de maneira infantilizada e sendo tratadas como propriedades. Elas eram mantidas como jardins sem cultivo...mas felizmente sempre chegava uma semente sendo trazida pelo vento. Embora o que escrevessem fosse desautorizado, elas insistiam assim mesmo. Embora o que pintassem não recebesse reconhecimento, nutria a alma do mesmo jeito. As mulheres tinham de implorar pelos instrumentos e pelo espaço necessário às suas artes, e , se nenhum se apresentasse elas abrim espaço em árvores, cavernas, bosques, armários.
A dança mal conseguia ser tolerada, se é que o era, e por isso elas dançavam na floresta, onde ninguém podia vê-las, no porão, ou no caminho para esvaziar a lata de lixo. A mulher que se enfeitava demais despertava suspeitas. Um traje ou o próprio corpo alegre aumentava o risco dela ser agredida ou sofrer abuso sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam os seus próprios ombros.
Era uma época em que os pais que maltratavam seus filhos eram simplesmente chamados de " severos", em que as lacerações espirituais das mulheres profundamente exploradas eram denominados " colapsos nervosos", em que as meninas e mulheres que vivessem apertadas em cintas, amordaçadas e contidas eram consideradas " certas", enquanto que aquelas que conseguiam fugir da coleira uma ou duas vezes na vida eram classificadas " erradas".

As questões da alma feminina não podem ser tratadas tentando-se esculpi-la de uma forma mais adequada a uma cultura inconsciente, nem é possível dobrá-las até que tenham um formato intelectual mais aceitável para aqueles que alegam ser os únicos detentores do consciente. Na verdade a meta deve ser a recuperação e o resgate da bela forma psíquica natural da mulher.

Chamo essa natureza selvagem de "A Mulher Selvagem", porque com essas exatas palavras uma lembrança antiga é acionada, voltando a ter vida. Trata-se da lembrança do nosso parentesco absoluto, inegável e irrevogável com o feminino selvagem, um relacionamento que pode ter se tornado espectral pela negligência, que pode ter sido soterrado pelo excesso de domesticação. Podemos ter-nos esquecido do seu nome, podemos não mais atender quando ela chama o nosso, mas, na nossa medula nós a conhecemos e sentimos a sua falta. Sabemos que ela nos pertence, assim como nós a ela.

A Mulher Selvagem vem agindo como sombra com as mulheres há anos. Ora temos um vislumbre dela, ora ela volta a ficar invisível, assim como os lobos conseguem deslocar-se com a maior delicadeza sem fazer barulho. No entanto, ela aparece tantas vezes em nossas vidas e sob formas tão diferentes que nos sentimos cercadas por suas imagens e seus impulsos. Ela nos chega em sonhos ou em histórias, pois quer ver quem somos e se já estamos prontas para nos reunirmos a ela. Se ao menos olharmos para as sombras que lançamos, veremos que elas não são formas humanas, bípedes, mas que tem um lindo formato de algo livre e selvagem.
Estamos destinadas a ser residentes permanentes no seu território, não apenas turistas, pois provimos dessa terra. Ela é ao mesmo tempo nossa terra natal e nossa herança. A força selvagem da psique está nos seguindo como sombra por algum motivo.
Tudo o que as mulheres foram perdendo pelos séculos afora pode ser encontrado de novo se seguirmos suas pistas. Esses tesouros perdidos e roubados ainda lançam sombras sobre os nosso sonhos noturnos, nos sonhos diurnos da nossa imaginação, na poesia e em qualquer momento de inspiração. As mulheres por todo o mundo- a sua mãe, a minha, as nossas filhas, irmãs, a sua amiga, todas as tribos de mulheres ainda desconhecidas- todas nós sonhamos com o que está perdido, com o que em seguida irá emergir do inconsciente. Todas sonhamos os mesmos sonhos no mundo interio. Nunca ficamos sem o mapa. Nunca ficamos sem poder contar com a outra. Nós nos unimos através dos sonhos.
Sonhamos constantemente com o arquétipo da Mulher Selvagem. Nascemos e renascemos todos os dias e criamos a partir dessa energia o dia inteiro. É vindo dessa terra que voltamos para o nosso dia-a-dia. Voltamos daquele lugar selvático para nos apresentarmos diante do computador, da panela, do professor, do livro, do freguês. Instilamos o mundo selvagem no nosso trabalho, na criatividade do mundo dos negócios, nas nossas decisões, na nossa arte, nos planos, na vida familiar, na educação, nas liberdades, direitos e deveres. O feminino selvagem não é apenas sustentável em todos os mundos, é ele quem sustenta todos os mundos.
Estamos usando as vozes da nossa mente, da nossa vida e da nossa alma para chamar de volta a intuição, a imaginação, para invocar a Mulher Selvagem. E certamente ela aparece.
As mulheres não podem fugir disso. Foi dentro desse relacionamento essencial, fundamental e básico que nascemos e na nossa essência é dela que derivamos.
Há ocasiões em que vivenciamos a sua presença, mesmo que transitoriamente, e ficamos loucas de vontade de continuar. Para algumas mulheres essa revitalizante " prova da natureza" acontece durante a gestação, amamentação, durante as mudanças que se surgem quando se educa um filho, durante os cuidados que dispensamos a um relacionamento amoroso ou a um jardim muito querido.
Por meio da visão também temos uma percepção dela; através das cenas de rara beleza. Ela nos chega por meio do pôr-do-sol, da lua cheia e do mar ou ainda pela beleza de um filho recém- nascido.
Ela nos chega também através dos sons, do sussuro, da música, da palavras, da poesia. Daqueles estímulos que fazem nosso coração vibrar e nos trazem a lembrança, pelo menos por um instante, da substância da qual somos feitas e do lugar que é o nosso verdadeiro lar.
Quando as mulheres reafirmam seu relacionamento com a natureza selvagem, elas recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia, uma visionária, um oráculo, uma intuitiva, uma inspiradora, uma criadora e uma ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundo interior e exterior.
Tendo a Mulher Selvagem como aliada, passamos a ver, não com dois olhos, mas com a intuição que dispõe de muitos olhos como uma noite estrelada. Ela carrega consigo os elementos para a cura da mulher, traz tudo o que a mulher precisa ter e saber. Ela é tanto o veículo como o destino.
Aproximar-se da natureza institiva não significa desestruturar-se, mudar tudo da direita para a esquerda, do preto para o branco, agir como louca ou descontrolada. Não significa tornar-se menos humana.
Ela implica em delimitar territórios, encontrar a nossa matilha, ocupar nosso corpo com segurança e amor independente dos dons e das limitações desse corpo, falar e agir em defesa própria, estar consciente, agir e escolher de maneira consciente, estar alerta, enfrentar e vencer seus próprios medos e ilusórios limites, tentar uma vez mais, recorrer a intuição e ao pressentimento inatos, adequar-se aos próprios ciclos, descobrir aquilo a que pertencemos, dizer não sem culpa e sem medo e reivindicar todos aqueles aspectos das realizações que são nossas por direito natural.

* Texto adaptado do livro: "Mulheres que correm com os lobos"- ( Clarice E. Pinkola)